MINISTÉRIO DA CULTURA Fundação Biblioteca Nacional Departamento Nacional do Livro A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS João do Rio This is a sensible book. This is a book to improve your mind. I do not tell you all I know, because I do not want to swamp you with knowledge... Jerome K. Jerome A João Ribeiro Profunda admiração JOÃO DO RIO
A rua faz as celebridades e as revoltas, a rua criou um tipo universal, tipo que vive em
cada aspecto urbano, em cada detalhe, em cada praça, tipo diabólico que tem dos gnomos e dos
silfos das florestas, tipo proteiforme, feito de risos e de lágrimas, de patifarias e de crimes
irresponsáveis, de abandono e de inédita filosofia, tipo esquisito e ambíguo com saltos de felino
e risos de navalha, o prodígio de uma criança mais sabida e cética que os velhos de setenta
invernos, mas cuja ingenuidade é perpétua, voz que dá o apelido fatal aos potentados e nunca
teve preocupações, criatura que pede como se fosse natural pedir, aclama sem interesse, e pode
rir, francamente, depois de ter conhecido todos os males da cidade, poeira d’ouro que se faz
lama e torna a ser poeira — a rua criou o garoto!
Essas qualidades nós as conhecemos vagamente. Para compreender a psicologia da rua
não basta gozar-lhe as delícias como se goza o calor do sol e o lirismo do luar. É preciso ter
espírito vagabundo, cheio de curiosidades malsãs e os nervos com um perpétuo desejo
incompreensível, é preciso ser aquele que chamamos flâneur e praticar o mais interessante dos
esportes — a arte de flanar. É fatigante o exercício?
Para os iniciados sempre foi grande regalo. A musa de Horácio, a pé, não fez outra coisa
nos quarteirões de Roma. Sterne e Hoffmann proclamavam-lhe a profunda virtude, e Balzac fez
todos os seus preciosos achados flanando. Flanar! Aí está um verbo universal sem entrada nos
dicionários, que não pertence a nenhuma língua! Que significa flanar? Flanar é ser vagabundo e
refletir, é ser basbaque e comentar, ter o vírus da observação ligado ao da vadiagem. Flanar é ir
por aí, de manhã, de dia, à noite, meter-se nas rodas da populaça, admirar o menino da gaitinha
ali à esquina, seguir com os garotos o lutador do Cassino vestido de turco, gozar nas praças os
ajuntamentos defronte das lanternas mágicas, conversar com os cantores de modinha das alfurjas
da Saúde, depois de ter ouvido dilettanti de casaca aplaudirem o maior tenor do Lírico numa
ópera velha e má; é ver os bonecos pintados a giz nos muros das casas, após ter acompanhado
um pintor afamado até a sua grande tela paga pelo Estado; é estar sem fazer nada e achar
absolutamente necessário ir até um sítio lôbrego, para deixar de lá ir, levado pela primeira
impressão, por um dito que faz sorrir, um perfil que interessa, um par jovem cujo riso de amor
causa inveja. #Ler mais...